Num hospital do interior do país havia dois pacientes incapacitados que partilhavam o mesmo quarto. Um deles a rondar os trinta e cinco anos e o outro, mais jovem, com doze anitos apenas.
O mais velho fora ali parar após um acidente de Mota que o paralisara da cintura para baixo e há sete meses que estava naquele quarto de hospital.
O mais jovem sofria de asma e ficara tetraplégico após uma meningite que por pouco lhe não ceifou a sua jovem vida e era o locatário mais antigo do hospital. Há ano e meio que dera entrada nas Urgências daquela unidade hospitalar e o seu débil estado de saúde não lhe permitira ainda regressar ao seu lar, para junto dos seus pais e irmãos.
Ambos eram sobejamente conhecidos em todo o Hospital por razões diversas. Tinham feitios bastante peculiares mas completamente opostos. O mais velho era irascível e grosseiro ao passo que o jovem era alegre e portador de um coração extremamente bondoso.
Como estava ali há mais tempo, o jovem ocupava a cama junto à janela o que lhe proporcionava uma vista parcial para o exterior. E como era bondoso ia relatando tudo o que via ao seu companheiro. Este, no entanto, nunca se mostrava contente com nada do que lhe contava o jovem.
Se eram crianças que jogavam à bola ou à cabra-cega, ele achava que havia coisas muito mais úteis que eles deviam fazer, como guardar cabras; se lhe contava como dois jovens apaixonados se beijavam e se mimavam um ao outro num banco de jardim, ele achava tudo aquilo uma pouca-vergonha, um atentado ao pudor, etc; se era uma criança que ajudava o pai a pintar a fachada da casa, ele achava que era uma exploração de trabalho infantil e que o fulano devia ser denunciado às autoridades; se era um jovem que brincava de bicicleta enquanto o pai serrava lenha para aquecer a família nas noites frias de Inverno, ele achava que os ‘putos’ de agora são mas é uns mandriões e que não ajudam os pais nas tarefas domésticas; enfim, tudo o que lhe contava o jovem merecia críticas ferozes da sua parte.
Mas o que é um facto é que ele não só gostava daquelas histórias como precisava delas como do pão para a boca, embora o não demonstrasse. As críticas eram só o seu mau feitio a falar, a inveja que o corroía por não poder estar no lugar dos protagonistas. Quando o seu jovem companheiro estava muito tempo calado, a olhar para o exterior da janela com ar pensativo e triste, ele desafiava-o:
― Então, hoje não há namoradinhos?! Não há ‘ramelanço’?! E os putos? Hoje não jogam à bola?! Não há acrobacias ciclisticas?! Ah! se eu lá estivesse… eu é que lhes ensinava como é que se joga à bola… Como se faz um looping de bicicleta… Algum dia viste alguém fazer um looping de bicicleta?! Não, claro que não, são todos uma cambada de medrosos… E à gaja… eu dizia-lhe a ela… ia ver o que é um homem a sério e como se dá uma … à maneira…
E o pequeno para o não ouvir, começava a conta-lhe o que via: Um jardim muito bonito, com flores lindíssimas que eram tratadas amorosamente pela mais bela ‘princesa’ que ele alguma vez vira…
O mais velho calava-se por momentos – imaginando, talvez, como gostaria de ter essa bela ‘princesa’ nos braços e mostrar-lhe como se fazia, como se dava uma … à maneira – até que recomeçava com os seus remoques mordazes. Tudo para disfarçar a maldita inveja que o corroía.
Certa noite o pequeno teve um ataque de asma violento mas ao tentar carregar no botão de emergência, para chamar a enfermeira de serviço, não o encontrou e acabou por morrer por falta de assistência.
Com a morte do pequeno ficou vaga a cama junto à janela e no dia seguinte ela foi ocupada pelo companheiro mais velho.
Claro que ninguém suspeitava que o miúdo morrera por falta do botão que o seu companheiro de quarto lhe subtraíra o tempo necessário para ele sucumbir ao ataque de asma. Aquele lugar junto à janela tinha que ser seu e o miúdo não dava mostras de melhorar e sair dali. Se ele morresse, ficava com o caminho livre. E se bem o pensou melhor o fez. Uma noite, ao vê-lo cair em sono profundo, escondeu-lhe o botão, voltando a colocá-lo no seu sítio antes que alguém desse pela marosca.
― Finalmente – pensou ele, ao ver-se transferido para a cama junto à janela – vou poder ver com os meus próprios olhos as belezas que estão lá fora. O raio do pirralho já me andava a enervar com as suas lenga-lengas. Sabia lá ele o que é uma bela 'princesa' a sério… ou o que fazer com ela… Finalmente vou poder comer a ‘tua’ bela ‘princesa’, meu lindo… por hora com os olhos, mais tarde se verá!...
Instalou-se confortavelmente, pediu para lhe subirem a cama, recostou-se e, finalmente, com um raro sorriso nos lábios, malicioso, olhou para o exterior da janela com o intuito de regalar a vista.
Mas o que viu produziu nele um efeito mais devastador do que se tivesse sido fulminado por um raio. Nada do que a criança lhe contara correspondia à realidade. Daquela janela não se avistava mais do que um muro coberto de silvas e hera e, para lá dele, campos sem fim de matagais tão virgens como o âmago da Amazónia.
Recordo o que Bertrand Russel, Filósofo, Matemático, Crítico social e Escritor inglês do século XIX, afirmava a propósito da inveja:
“O invejoso, em vez de sentir prazer com o que possui, sofre com o que os outros têm”.
Talvez valha a pena pensar nisto!…
L.P.
2 comentários:
DEPOIS DE CAMINHAR PELAS PALAVRAS DO TEXTO, MUITAS SE AGARRARAM AOS MEUS SAPATOS.
PORÉM, DEIXEI DE SABER O QUE FAZER E ENTREI – CONFESSO – EM PÂNICO.
ERAM TANTAS QUE TIMIDAMENTE APENAS TIVE CORAGEM DE LHES DIZER: - BASTA ALGUMAS FRASES!
AO ACASO: Inveja é a última palavra de Os Lusíadas de Camões.
Inveja é um produto social e histórico, sentimento esse arraigado no capitalismo no darwinismo social, na auto-preservação e auto-afirmação, a inveja seria a arma dos "incompetentes".
Evitamos a inveja se guardarmos as alegrias para nós próprios.
Séneca
O número dos que nos invejam confirma as nossas capacidades.
Óscar Wilde
Apenas a miséria é sem inveja.
Giovani Boccaccio
Um abraço para ti Paulo
Amigo Paiva (Thor) agradeço a gentileza da tua participação e a simpatia das tuas palavras. Se estas me estimulam aquela muito me honra. No entanto uma e outras não me surpreendem já que há muito conheço essa tua alma gentil e poética.
Espero que tenhas eliminado esse teu «pânico», o qual eu não entendo, pois sei que és corajoso.
Colocar palavras num blogue não é mais do que gritar para a multidão: uma dúzia consegue escutar, meia dúzia entende a mensagem, dois ou três gostam do que ouvem e os restantes, depois de olharem, voltam-nos as costas indiferentes.
Além do mais sabemos que Thor (Trovão) era um deus temível da mitologia nórdica que se destacava pela sua elevada temperatura e pela robustez extraordinária, equiparada muitas vezes à de Hércules.
Escolheste, além do mais, o dia propício para a tua participação neste espaço: a Quinta-feira, ou seja, o quinto dia da semana ao qual os anglo-saxões deram o nome de Thor: Thursday ou “Thor’s day”.
Agora que penso nisso, quem sabe se o termo “Trovoada” não tenha igualmente derivado de Thor, por via popular: Thor-voada ou “Voada de Thor” já que, diz a lenda, «os povos que o veneravam acreditavam que quando trovejava o seu carro puxado por duas cabras estava a percorrer o céu e que lançava das alturas o machado ou martelo de pedra ardente, Mjöllnir». Quem sabe?!
Segundo a Epistemologia muitas ‘Crenças’ correspondem à ‘Verdade’ embora tal não possa ser classificado como ‘Conhecimento’ enquanto não for provado cientificamente. Mas creio que este meu relampejo divagante, embora sendo uma minha querença, não passará jamais de uma mera Crença.
Quanto às frases com que ilustraste o teu comentário destaco a primeira pois fez-me lembrar que, passado um mês da publicação do meu blogue, ainda não tinha feito uma única referência ao grande poeta – e meu homónimo – Luís de Camões.
Fica, pois, aqui o reparo e a promessa de voltar ao mestre numa próxima oportunidade.
Grato pela tua participação. Volta breve.
Um abraço,
L.P.
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